Conveyer belt process with food related items being destroyed due to giant viruses

Como a pandemia da COVID-19 pressiona a cadeia de suprimento de alimentos

Ir para outra seção

VISÃO GERAL

A pandemia do novo coronavírus (COVID-19) transformou a maneira como vivemos e trabalhamos e um dos impactos mais imediatos e críticos foi o seu efeito no suprimento de alimentos.

Os noticiários mostrando as prateleiras vazias nos supermercados no início da pandemia e os agricultores jogando fora seus produtos estragados, exemplificam a interrupção que a COVID-19 causou nessa cadeia. No Brasil, a agricultura familiar foi a mais atingida, já que houve perda de espaço para venda e parte significativa da produção acabou estragando antes mesmo de ser colhida.

Os consumidores que se preparavam para o confinamento compraram alimentos básicos em volumes extraordinários. Quando as pessoas começaram a fazer pães e bolos em casa, a farinha e o fermento ficaram escassos. Aqui no Brasil essa atividade até ganhou nome: ‘pãodemia’. Resultado: os varejistas registraram vendas recordes.

Supermercados pediram que os consumidores não fizessem compras por receio de desabastecimento, enquanto asseguravam que estavam tomando as medidas ao seu alcance para atender à demanda crescente.

Ao mesmo tempo, 26 países da América Latina e do Caribe firmaram o compromisso de coordenar o fornecimento de quantidade suficiente de alimentos seguros e nutritivos para os 620 milhões de habitantes da região durante a pandemia da COVID-19, considerando que, mesmo com bons níveis de estoques globais de alimentos e boas colheitas nos principais países produtores, a extensão pandemia por muito tempo levaria as cadeias de suprimentos de alimentos a uma pressão cada vez maior.

Nesse sentido, o Escritório Regional da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) garante que, se todos os países se esforçarem para manter as cadeias de suprimentos locais, nacionais, regionais e globais operando, poderão ser assegurados os alimentos de forma sustentável para toda a população.

“Os governos tiveram que começar a lidar não somente com o desafio sanitário gerado pela pandemia, mas também para garantir e proteger a cadeia logística que, em alguns casos, se tornou parte central das estratégias de confinamento, chegando mesmo a atingir a distribuição direta de alimentos para a população mais vulnerável”, explica Thiago Lang, Diretor de Specialties da Aon Brasil.

IMPACTOS NO MERCADO

A indústria brasileira de alimentos e bebidas registrou o módico crescimento de 0,8% em faturamento e 2,7% em produção física no primeiro semestre de 2020 em relação ao mesmo período do ano passado, de acordo com a pesquisa conjuntural da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA). O aumento do consumo das famílias dentro dos domicílios devido à pandemia, além da expansão das exportações e o desempenho do varejo alimentar no mercado interno, contribuíram para a leve melhora na performance do varejo em comparação com o 1º semestre de 2019.

Um setor que superou todas as expectativas de rentabilidade no auge da pandemia foi o de produção de carne bovina. As brasileiras JBS e a Marfrig geraram, juntas, quase R$ 14 bilhões em caixa livre e atingiram o menor índice de endividamento da história. A conjuntura favorável e atípica do segundo trimestre está intimamente ligada aos impactos da COVID-19 sobre a produção de carne bovina e suína nos Estados Unidos. A interrupção das atividades em dezenas de frigoríficos diante da contaminação de funcionários das plantas reduziu em cerca de 25% a produção, criando um excedente de bois não abatidos.

O resultado disso foi o barateamento das matérias-primas, enquanto aumentaram os preços do produto final. De forma geral, no segundo trimestre as empresas brasileiras com maior exposição ao mercado externo se beneficiaram da desvalorização do real ante o dólar e da recuperação dos preços de commodities agrícolas, diante da recuperação da demanda na China, que saiu antes da pandemia.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) afirmou recentemente que as mudanças no padrão de consumo de carnes do Brasil, após o início de pandemia, bem como a redução da renda média da população, levarão a uma queda de 2,8% no valor da produção pecuária em 2020. Esse resultado deve impedir um crescimento ainda maior no PIB do setor agropecuário, cuja previsão do Ipea passou de 2% para 1,5% neste ano, segundo Carta de Conjuntura divulgada no final de agosto.

Já para o setor de produção de soja, milho e trigo o panorama global é animador. O Conselho Internacional de Grãos (IGC) elevou a sua estimativa para produção global na safra 2020/21, em 5 milhões de toneladas. O IGC atribui a revisão na safra à perspectiva de maior produção global desses produtos. Se confirmada, a perspectiva aponta para uma safra recorde – 49 milhões de toneladas maior que a temporada anterior.

No Brasil, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) projeta a colheita de 278,7 milhões de toneladas de grãos, que representa o crescimento de 8% na produção para a safra 2020/21. Segundo a Conab, a boa rentabilidade do milho e da soja na safra que se encerra estimula os produtores brasileiros a aumentar a área dessas culturas para o próximo período.

“A tendência de recuperação pós-pandemia tende a ser mais acelerada para alguns setores, como da soja, que vêm registrando recordes seguidos no valor da saca. Embora o mercado de alimentos tenha sentido algum impacto, a tendência de crescimento se mantém não só no Brasil como em todo o mundo” afirma Lang.

MUDANÇA NOS HÁBITOS DE COMPRA

Os hábitos de compra mudaram drasticamente em todo o mundo devido à pandemia, principalmente na lista de supermercado. Cinquenta por cento das famílias brasileiras, mexicanas e colombianas dizem estar estocando produtos suficientes para pelo menos três semanas, segundo pesquisa da Nielsen.

Além disso, o estudo Impacto global da COVID-19 nos consumidores, também da Nielsen, relata que as pessoas estão se abastecendo mais de algumas categorias de alimentos, como molhos e condimentos (45%), alimentos prontos para consumo (42%) e produtos com prazos de validade mais longos, como por exemplo, alimentos enlatados (33%).

“É muito provável que muitos desses comportamentos se tornem permanentes, seja como uma mudança de preferências ou como uma maneira eficiente de enfrentar uma realidade econômica repleta de incertezas”, observa Lang. “O exposto acima não tem um impacto natural apenas sobre o que é consumido, mas também sobre como se consome. Por exemplo, o comércio físico foi seriamente afetado devido ao isolamento, o que levou a um maior uso do comércio eletrônico”, afirma o executivo.

No Brasil, as vendas online cresceram 47% no 1º semestre, maior alta em 20 anos, segundo o Webshoppers, relatório sobre e-commerce elaborado pela Ebit Nielsen. Ainda segundo o estudo, o pico das compras online ocorreu no auge das restrições de circulação nas cidades brasileiras para a contenção da covid-19, entre os dias 05 de abril e 28 de junho. Nesse recorte de tempo, houve 70% de aumento no faturamento. Já na Argentina, a Câmara de Comércio Eletrônico (Cace) do país observou que em 2020 o setor terá um reflexo de dois dígitos devido à digitalização forçada pela situação de isolamento.

O Mercado Livre, empresa líder em tecnologia de comércio eletrônico da América Latina, divulgou recentemente que a pandemia ajudou notavelmente os resultados da empresa. Foram vendidos, por exemplo, 178,5 milhões de itens no marketplace, o que representa uma alta de 101,4% em relação ao mesmo período do ano passado. Já o número de usuários únicos ativos atingiu os 51,5 milhões – um crescimento de 45,2%. E antes mesmo de divulgar os dados de crescimento, o Mercado livre já havia ultrapassado a Vale e se tornado a empresa mais valiosa da América Latina, segundo segundo ranking da consultoria Economatica.

De acordo com um estudo da Trend Watching, após o coronavírus haverá grandes mudanças nos serviços e produtos tecnológicos. No comércio, se fala em shopstreaming, uma evolução do e-commerce que inclui interação em tempo real com o cliente por meio de plataformas de streaming. Da mesma forma, há uma tendência a incluir inteligência artificial no comércio.

DESAFIOS NO TRANSPORTE

O setor de transporte marítimo está sentindo na pele as consequências da pandemia, que dificulta o movimento das mercadorias e aumenta a possibilidade de uma escassez de produtos, já que a marinha mercante é um elo essencial na cadeia de suprimentos de muitos produtos do cotidiano vendidos nos supermercados.

O transporte rodoviário também faz parte do processo-chave para que os produtos cheguem aos supermercados e lojas online. As empresas do setor estão passando por uma delicada situação financeira devido ao declínio da atividade econômica. Por exemplo, a Confederação Nacional do Transporte (CNT) mostra que a demanda por transporte de cargas diminuiu 40%. A liquidez e a quebra da cadeia de pagamentos também se tornaram uma preocupação. Sete em cada 10 transportadoras pesquisadas já enfrentam graves problemas de caixa e 53% possuem recursos apenas para um mês de operação.

“Encurtar as cadeias de suprimentos, trazendo o armazenamento intermediário de mercadorias o mais próximo possível do consumidor final é um desafio adicional do setor”, afirma Ricardo Guirao, Diretor de Transportes da Aon Brasil. “Isso significa adaptar locais e logística para manter as prateleiras permanentemente cheias de produtos, com o benefício que isso traz em termos de manutenção do fluxo de caixa do distribuidor final, que de uma maneira ou de outra mantém a cadeia completa”, enfatiza.

OPORTUNIDADES E APRENDIZADOS

As interrupções na cadeia de suprimento de alimentos causadas pela pandemia da COVID-19 tornaram visíveis deficiências e oportunidades de melhoria.

“Com ou sem um vírus ativo circulando, mudou nossa percepção do amanhã. O consumidor mudou, o fornecedor mudou e a visão governamental em relação a esse assunto mudou”, diz Lang. “Foi uma quebra de paradigmas que pareciam estar enraizados. A palavra-chave que a pandemia trouxe em relação à cadeia é flexibilidade, um termo que pode significar uma grande oportunidade ou uma grande ameaça para os operadores do sistema”, conclui.

A maior lição pandemia da COVID-19 talvez seja a reflexão sobre as maneiras pelas quais obtemos e consumimos alimentos e como a indústria alimentícia nos fornece. As decisões que os líderes tomam hoje para lidar com as interrupções pandêmicas servirão como catalisadores para melhorar a cadeia de suprimento de alimentos no futuro.